REPORTAGEM: BOM NÃO É O BASTANTE
Por Márcia di Domenico
O excesso de auto exigência é o mal da vez entre os profissionais. Enquanto tentam se encaixar em expectativas altas demais e nas limitações pessoais, eles sofrem, adoecem e perdem produtividade.
Eles são incansáveis no trabalho, desapegados dos modelos convencionais de emprego, têm urgência do sucesso e um compromisso com a felicidade profissional – sem ela, trocam de empresa sem olhar para trás. Falando assim, pode parecer que os millennials, geração nascida entre 1980 e 2000, estão muito bem resolvidos na vida e na carreira.
Mas uma pesquisa recente publicada no periódico Psychological Bulletin, da Associação Americana de Psicologia, revelou que os jovens de hoje estão insatisfeitos e se cobram como nunca para ser bem-sucedidos. Em relação à geração anterior com a mesma idade, são 10% mais exigentes quanto ao próprio desempenho e se sentem 33% mais pressionados por expectativas externas de sucesso. O estudo, realizado com mais de 41.000 universitários nos Estados Unidos, no Canadá e no Reino Unido entre 1989 e 2010, mostrou, ainda, que esses jovens são 16% mais críticos sobre a performance dos outros em comparação com duas décadas atrás.
Para os autores do estudo, Thomas Curran, Ph.D. em psicologia e pesquisador na Universidade de Bath, e Andrew Hill, da York St . John University, ambas as escolas no Reino Unido, o comportamento é resultado de mudanças culturais, econômicas e sociais desencadeadas a partir dos anos 70. A industrialização, a abertura econômica e o sistema baseado nas vontades do mercado abriram as portas de uma era dominada pelo individualismo, pela preocupação com o status social e material e pela competitividade. Os pesquisadores citam, por exemplo, uma pesquisa que mostra que para 81% dos americanos nascidos na década de 80 acumular riqueza está entre as principais metas de vida – índice 20% mais alto do que entre os nascidos nos anos 60 e 70. A geração também estaria mais disposta do que os pais a tomar empréstimos e a gastar uma proporção maior dos rendimentos em artigos de luxo como forma de se destacar em relação aos outros. Esse contexto fomentou a ideia de indivíduos superiores e inferiores, o medo da desaprovação social e a rejeição ao fracasso. “Essas pessoas adotaram ideais inatingíveis de sucesso e perfeição como essenciais para se sentir seguros, incluídos e importantes”, diz Thomas Curran.
O perigo da comparação
Nos dias atuais, o fenômeno das redes sociais tem papel fundamental no aumento da auto cobrança. “Elas permitem editar uma imagem de si mesmo em que se vê apenas sucesso e felicidade”, afirma Danilca Galdini, diretora da NextYiew People, empresa de pesquisa voltada para gestão e desenvolvimento de pessoas. “Muitas vezes o retrato não corresponde à realidade. Mesmo quando é real, ninguém leva em conta o esforço e os fracassos por trás daquele resultado. Fica a sensação de que o outro está se dando bem enquanto você está estagnado.”
As referências de empreendedores que ficaram bilionários antes dos 30 anos, como Mark Zuckerberg e Evan Spiegel (um dos criadores do Snapchat), também aumentam a pressão. Afinal, alimentam a ideia de que riqueza, sucesso e poder estão ao alcance de qualquer um que se esforce o bastante para consegui-los – o princípio da meritocracia. Mas isso não é verdade, sobretudo na realidade brasileira. “São exceções que combinam capacidade com sorte, mas que muitos assumem como padrões de sucesso. Isso gera frustração e sofrimento porque são modelos inalcançáveis para a maioria”, afirma Adriana Prates, consultora de carreira e presidente da Dasein Executive Search.
Há, ainda, a crueldade do mercado. Processos seletivos complexos e exigências inatingíveis por parte das empresas elevam a angústia. “O profissional fica achando que está defasado ou despreparado, sendo que, muitas vezes, não teve sequer tempo de acumular referências e o conhecimento exigido”, afirma Adriana Gomes, orientadora de carreira e professora de pós-graduação na Escola Superior de Propaganda e Marketing.
O papel dos pais
Em casa, a pressão para acertar também pesa. Seja pela cobrança dos genitores por empenho dos filhos nos estudos e no trabalho, seja por uma noção dos próprios profissionais de que há uma dívida a ser paga aos mais velhos. “Muitos se sentem no dever de retribuir logo o esforço dos pais em lhes garantir uma boa formação, o que provoca ansiedade e culpa”, afirma Danilca, da NextView People.
A relações-públicas Giovana Felix de Araújo Guedes, de 21 anos, gerente de pré-vendas da startup Rank MyApp precisou contar com a ajuda da mãe para pegar mais leve na autoexigência que se impunha no colégio e na faculdade. “Tirar nota 9 para mim não estava bom, achava que tinha fracassado em corresponder às expectativas do professor e do restante da classe”, diz.
Aos poucos, foi aprendendo a valorizar o esforço durante o processo, e não apenas no resultado final – estratégia que agora procura exercitar profissionalmente. Giovana admite que não se libertou da vontade de se superar, mesmo quando o trabalho já está bom o bastante. “Quero sempre entregar algo melhor do que antes, encontrar um jeito novo de fazer. Frequentemente o chefe percebe minha mania de perfeição e dá feedbacks do tipo ‘já está ótimo assim’, mas várias vezes fico com a sensação de que poderia ter ido além”, afirma. Líder de uma equipe de cinco estagiários, ela se vê como minoria perfeccionista e garante que não cobra dos subordinados a excelência que faz questão de entregar. “Exijo dedicação, mas tenho consciência de que nem todo mundo é metódico como eu. Procuro extrair as potencialidades de cada um.”
Crítica pessoal
Quando a imposição por ser melhor motiva a busca equilibrada por aperfeiçoamento pessoal e profissional, tudo bem. Mas o mais comum é que acabe prejudicando os planos para a carreira, como ocorreu com a professora Débora Cavalcante, de 42 anos. Na faculdade, ela percebia que demorava demais para concluir tarefas simples, mas de cara não achou que fosse um problema. “Considerava excesso de rigor e até um cuidado desejável com os detalhes”, diz. Até que se deu couta de que, na verdade, agia pressionada pela opinião de terceiros e pelo medo de não ser julgada como gostaria. “Abria mão de boas ideias e projetos e adiava decisões importantes para não ter de lidar com a pressão que eu mesma me impunha.” Nesse ritmo, Débora ficou quatro anos a mais na faculdade porque protelou a entrega do projeto de conclusão, usando como pretexto o fato de estar sem tempo. “Aceitava todos os trabalhos que apareciam para ter a desculpa da agenda lotada.” Já formada, acabou repetindo o comportamento: foram cinco anos adiando o sonho do mestrado e se sentindo massacrada pela dificuldade de administrar a auto exigência. Os anos desperdiçados a fez pensar, mas não resolveram a questão. “Quando trabalho em equipe, me policio para que meu grau de exigência não prejudique o grupo. Quando dou uma palestra ou sou a única responsável por um projeto, faço de tudo para honrar os prazos, ainda que o custo emocional e físico seja alto”, afirma.
A soma de auto cobrança excessiva e falta de maturidade para lidar com a frustração também produz resultados devastadores sobre a saúde, a autoestima e o crescimento profissional. Primeiro, porque muita autocrítica e auto cobrança nem sempre se refletem em mais eficiência. “Pelo contrário: o perfeccionista evita errar a qualquer custo e, com isso, acaba deixando de mostrar seu potencial e não tendo o destaque que busca”, afirma Adriana Prates, da Dasein.
Não à toa, ansiedade, depressão, insônia, burnoult, transtornos alimentares, automutilação e abuso de medicamentos se tornam mais recorrentes entre os jovens. No limite, infelizes como estão, essa geração acaba com a própria vida. No Brasil, o número de pessoas de 15 a 29 anos que se suicidaram subiu 37% entre 1990 e 2014 passando de 4,1 (em 100.000 jovens) para 5,6, de acordo com o Mapa da Violência 2017, estudo publicado anualmente com base em informações oficiais sobre mortalidade do Ministério da Saúde. A taxa é equivalente à do Reino Unido, que registrou 5,5 mortes por 100.000 jovens em 2015, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas do país.
Os dados mostram que essa geração – e quem tem o perfil exigente, independentemente da idade- precisa tirar um pouco o peso que sentem por querer ser sempre a melhor.
Você está passando dos limites?
Analisar o próprio comportamento é o melhor caminho para saber se não está pegando pesado demais
- Sensação de que ninguém valoriza seu esforço: Você passou 0 dia inteiro preparando um relatório pedido pelo chefe, que leu só até a metade e ficou satisfeito. A sensação pode ser de que você se dedica mais do que a empresa merece ou que impera a lei do mínimo esforço. A mensagem real, no entanto, tem a ver com identificar prioridades. Gastar horas numa tarefa e ir além do que foi solicitado apenas com 0 objetivo de impressionar não é nada mais d0 que perda de tempo. “Não adianta entregar algo com qualidade, mas sem utilidade”, afirma Danilca Galdini, diretora da Nextview people, empresa de pesquisa voltada para gestão e desenvolvimento de pessoas.
- Só joga para ganhar: O erro é parte de qualquer processo de desenvolvimento. Mas para quem se cobra demais, fracassar é voltar várias casas no jogo profissional. Na ansiedade de acertar, mas muitas vezes sem ter as ferramentas necessárias para isso, por inexperiência ou imaturidade própria da idade, é comum 0 sujeito auto exigente travar, procrastinar, deixar de agir e, com isso, perder a oportunidade de se destacar ou simplesmente aprender algo novo.
- Os pensamentos não dão trégua: A atividade mental excessiva pode se tornar uma inimiga perigosa. Remoer pensamentos, planejar à exaustão e questionar demais rouba tempo e energia que poderiam ser direcionados à ação. Em outras palavras, pare de pensar e comece a agir em direção ao que deseja alcançar na maioria das vezes. Detalhes e ajustes podem ser definidos com os projetos em andamento.
- Trabalhar em equipe é um pesadelo: O perfeccionista não só tende a ser intolerante com as falhas alheias ainda que não tão implacavelmente quanto com as próprias como teme ser julgado pelo trabalho feito por outros. Assim, corre 0 risco de assumir mais do que é capaz de realizar. Tem dificuldade para delegar e frequentemente se vê sobrecarregado — 0 que é um tiro no pé porque acaba sendo um obstáculo para cumprir tarefas com eficiência.
- Seu foco é 0 negativo: A mania de colocar uma lente de aumento no que não deu certo ou não saiu como esperado é característica de quem exige muito de si mesmo. Experimente um exercício no fim do expediente, liste os pontos altos e baixos daquele dia de trabalho. Sendo honesto. Uma reunião, uma conversa com 0 chefe, um elogio, uma entrevista, um relatório entregue no prazo, tudo entra no balanço. É provável que você se surpreenda com 0 fato de que há menos coisas com 0 que se preocupar do que você imagina.
FONTE: matéria originalmente publicada na revista Você S/A – edição julho 2018.