“O design cumpre um papel efetivamente mais estratégico do que estético”
Ele está no celular que nos desperta, em nossas roupas e refeições. Sem ele, não seria possível se deslocar com rapidez; tampouco trabalhar, estudar ou descansar. Sim, o design está em praticamente tudo que nos cerca. Compreendê-lo como parte da solução para os mais distintos desafios individuais e coletivos é surpreendente, mas enxergá-lo pelo olhar de Thiago Colares é fascinante.
Mestre em design e direção de arte pela Escola Superior de Design de Barcelona (Elisava), Colares é considerado um dos mais respeitados designers do país. Já foi premiado pela Bienal de Design Gráfico do Brasil, Clube de Criação Publicitária de Minas Gerais e levou pra casa os prêmios IDEA Brasil e ABF+RDI. Por mais de 10 anos integrou o Grupo Imaginarium e esteve à frente de sua Diretoria de Marca e Produto. Com a generosidade e simplicidade que lhe são peculiares, ninguém melhor que ele para trazer luz à profissão designer.
Unindo técnica, funcionalidade e estética, o design é tanto um processo que ajuda a resolver problemas individuais e coletivos, como uma ciência que gera experiências inovadoras. Por ter um conceito amplo e navegar em diversas áreas, às vezes é difícil ser compreendido. Eis aqui o desafio: como explicar o que é design e, sobretudo, a sua importância, para os não entendidos?
Resolver problemas e gerar experiências inovadoras: essa dupla responsabilidade do design, como colocado, é uma forma bem interessante de sintetizar nossa razão de existir. Mas eu iria além, dizendo que talvez o grande porquê do design seja resolver problemas ao promover experiências. Resolver problemas através de experiências memoráveis. É por meio delas que as soluções devem ganhar vida.
Não há mais a opção “ou”. Vivemos a era do “e”, do somar, do pensar coletivo, do cocriar. E somente através de experiências que carreguem sentido, que imprimam mais significado para aquele determinado contexto, que as soluções do design poderão ampliar seu poder de voz e ser verdadeiramente transformadoras.
Promover experiências, colocando o cliente e seu problema como protagonistas, entendendo suas necessidades, demandas, enriquecendo seu repertório e entregando valor para a sua jornada no mundo é o único caminho. A relevância do design se amplia quando pensamos dessa maneira.
Mas como explicar o que é design? Bem, retomando o desafio de uma explicação mais racional e cronológica. Ele nasce como disciplina, escola e ciência e se consolida efetivamente na Alemanha, em 1919, ainda que empiricamente o ser humano tenha criado ferramentas mais efetivas e soluções mais ergonômicas para os seus problemas individuais e coletivos desde o início de sua história. E bebendo do universo das artes plásticas, das artes e ofícios, da arquitetura, o design se formata como esse conjunto amplo e complexo de ferramentas para projetar soluções e atender às nossas mais diversas demandas, finalidades e objetivos como seres sociais.
Para muitos, o design carrega o estigma de ser uma maneira de intervir esteticamente e deixar as coisas mais bonitas, apenas. Entendo e acredito que o design cumpre um papel efetivamente mais estratégico do que estético. A relevância da solução visual é, de fato, de grande impacto e visibilidade, pelo poder de tangibilizar e materializar intenções, conceito e propósito. Mas precisamos entender que o tratamento visual, a adequação estética para essas diversas demandas e universos de aplicação é apenas uma das ferramentas do design. Antes de se pensar caminhos visuais e refinar a solução estética de um projeto, existe uma necessidade profunda de conhecimento do problema, do contexto, das necessidades latentes, de oportunidades potenciais, de mapeamento de riscos, de projeção de cenários.
Design dessa forma é uma ponte entre realidade e o que ainda está por vir, e a materialização dessas possibilidades se dá por meio da articulação entre estratégia, método, disciplina e pensamento sistêmico.
O termo design vem do inglês e traz a ideia de projetar. Os caminhos que levam à concretização de um projeto de design se dão, na maioria das vezes, através de novas conexões que são estabelecidas e de novas configurações, muitas vezes de elementos que já existem. O repertório dos profissionais envolvidos associado a metodologias precisas que reordenem e reconfigurem as informações em torno das necessidades do cliente são a forma mais potente de gerar soluções propositivas e relevantes para um determinado problema. Além disso, gera sentido para quem se relaciona com essa solução. Os caminhos criados a partir desse reordenar de repertório é o que leva o design a provocar a realidade e chegar a soluções tão adequadas quanto surpreendentes.
Das criações de Leonardo da Vinci, passando pelos produtos da revolução industrial, à escola Bauhaus, o design tem um papel notável em nossa história – legados que influenciam o modo de vida de muita gente até hoje. Pensando no que tem sido desenvolvido atualmente, você apontaria criações com semelhante impacto no comportamento humano, algo que permanecerá e influenciará gerações futuras? Por quê?
Leonardo da Vinci por muitos é considerado o primeiro designer de nossa história, dado tamanho brilhantismo, riqueza e método de sua estrutura de pensamento, além, obviamente, do impacto de suas proposições e criações.
É superinteressante – e particularmente gratificante – vê-lo associado à gênese do pensar e fazer design. Digo isso pelo privilégio que o design tem de tangenciar de forma tão tranquila o mundo das artes, da ciência, da poesia, da inventividade e se beneficiar disso de uma maneira natural. A arte, em suas incontáveis formas de se expressar, sempre esteve como manifestação das realidades vividas pelo ser humano, seus dilemas, dores e prazeres. Mas, para além disso, cumpre um papel de questionar, de provocar e de propor outras formas de pensamento e de vislumbrar o que está além do que já é estabelecido como realidade. Isso não deixa de ser uma força libertadora e um sopro de renovação constante.
Ainda que não se faça valer exclusivamente de uma visão autoral, como acontece com os artistas, o design se beneficia e faz uso desse lugar de influência. Essa chance desafiadora de inspirar e intervir na forma de consumir e de se relacionar com os objetos, serviços, situações diversas e até mesmo na forma de se relacionar com os outros seres de seu convívio é, ao mesmo tempo instigante e apaixonante.
O design de fato atravessa a Revolução Industrial, se fortalece com ela e evolui, acompanhando a própria evolução da sociedade, antecipando conceitos e criando demandas. Impossível pensar no impacto do design sem passar pelo universo da tecnologia que, mais do que nunca, avança a uma velocidade luz. E, nesse contexto, impossível também não trazer a emblemática Apple, que instaurou novos códigos de interação com a tecnologia e que significam tanto hoje para o modo de relacionamento do homem com seus instrumentos cotidianos e até mesmo com seu entorno social. Steve Jobs redefiniu a forma como as pessoas interagem e transformou os negócios ao lançar um aparelho de design elegante e aberto à criação de novos aplicativos.
Mas penso ser extremamente válido colocar, junto ao exemplo óbvio do iPhone, tantas outras formas de atuação do design e tantos outros impactos que o ele promove no cotidiano, muitas vezes invisíveis, silenciosos e transformadores. Da tecnologia que citei, viajo e vou até o saber ancestral para evidenciar que o design tem potência para alinhavar uma narrativa que pode – e deve! – permear universos a princípio tão dicotômicos.
Sou um entusiasta dos saberes do povo e das culturas ancestrais traduzidas, resinificadas e potencializadas em nosso contexto atual, bem como da Biomimética aplicada ao design. A inspiração na natureza, a generosidade da cultura vernacular, o respeito a tudo que elas nos entregam como soluções e caminhos possíveis é um repertório pronto a ser olhado e percebido com a devida importância que tem.
Eu penso em design e me emociono, porque percebo o seu poder se manifestando desde projetos como o AGT (A Gente Transforma), do Marcelo Resenbaum, que tem um impacto social, cultural e econômico enormes, até projetos globais de revisão de processos e posicionamento de grandes marcas. O design consegue participar da revisão completa de processos de embalagem e compromissos públicos de responsabilidade da cadeia e de sustentabilidade como as gigantes Coca-Cola e Nestlé, por exemplo, têm assumido e que certamente terão impactos importantes para o planeta e futuras gerações.
As possibilidades de atuar em soluções que por ora são locais e que podem também ser globais, que vão de soluções tecnológicas à preservação da longevidade dos saberes de comunidades ancestrais e de nossa cultura, fazem do design essa ferramenta cotidiana potente de influência, transformação e legados.
Para ampliar a compreensão sobre a atuação nessa área, nada melhor que abordar a vivência de um grande especialista. Por que você escolheu o design como profissão? O que de melhor ele agregou à sua vida? E quais foram os principais aprendizados e desafios impostos até hoje?
Cursei design e publicidade na busca de um caminho mais completo e uma visão mais ampla de carreira. Para mim foi uma base muito rica viver e experimentar essas perspectivas que se complementam e hoje entendo que fazem parte da minha forma de pensar e atuar.
Entrei no curso de desenho industrial na UEMG, com o objetivo de experimentar e descobrir o que o Design poderia ser. A intenção era de buscar no design ferramentas para complementar e apoiar a visão da publicidade e acabou sendo o contrário. O design se tornou uma escolha definitiva, que se consolidou à medida que fui me apropriando de tudo que a profissão poderia me proporcionar.
A aplicação do design se dá em quase todas as esferas de nosso convívio social, se pensarmos em tudo que vemos, consumimos, experimentamos e usamos. Isso é muito rico e interessante. O design editorial está em todos os livros, revistas e publicações que consumimos; packaging design está em tudo que se refere à embalagens; design de produto em tudo que se pensa em produto e inovação; design de marcas na construção e gestão das marcas; o design de interface em todos os aplicativos e telas; web design na internet; design de sinalização em toda a informação visual trabalhada nos ambientes. E ainda está em eventos, em processos, em serviços, na infografia, nos jogos, no tratamento da informação, na moda, na concepção de ambientes, no varejo e em tantos outros formatos.
De todas essas possibilidades, escolhi o design gráfico, que, além de minha formação, é uma grande paixão. Ser designer me permite transitar por inúmeros contextos e universos, quando vivencio o mercado dos projetos em que atuo e com os quais compartilho meu modo de pensar. Essa dinâmica me permite aprender com cada nova demanda, com o segmento de atuação de cada cliente e isso é um grande privilégio. Aprender com a história, com os valores e com a intenção de cada negócio é um processo muito enriquecedor.
Ao mesmo tempo, o designer nunca está sozinho. Ele geralmente anda em bando, trabalha em grupo e se relaciona com diversas interfaces, que vão desde ilustradores, fotógrafos, arquitetos, jornalistas, artistas, engenheiros de produção, cientistas, químicos, pesquisadores, antropólogos, chefs, vídeo-makers e animadores, roteiristas, publicitários, estilistas. Enfim, um projeto de design quase sempre é um grande portal de conhecimento, aprendizado e conexões com outros profissionais e áreas diversas, além de um grande desafio de compreensão de demandas e superação de resultados. É uma responsabilidade grande, ao mesmo tempo que se mostra um privilégio quando se coloca como forma de contribuir com a geração de valor e tangibilização de propósitos.
Acredito ser necessário sempre assumir uma empatia estratégica para que cada cliente possa ampliar o seu poder de expressão através dos meus recursos. É preciso dar espaço para que as necessidades e a voz do cliente se manifestem e se potencializem por meio do design. Pensar o design como um meio de entregar valor é muito interessante. E com isso, consigo transitar por muitos universos, projetando soluções para demandas distintas e vivenciando contextos que certamente não viveria se não tivesse o design como ofício e como forma de ver o mundo.
Essa bagagem eu levo pra vida e me faço valer do repertório que amplio quando faço uma imersão no universo de cada projeto. Essas camadas de conhecimento, essa aproximação com as necessidades humanas e as experiências acumuladas a partir disso certamente deixam o exercício do viver muito mais interessante.
Falando sobre mercado, como você enxerga a realidade do setor no Brasil? Há um entendimento, por parte das empresas/investidores, sobre sua importância na entrega de valor, resolução de problemas entre outros benefícios, ou ainda estamos longe disso?
Sou otimista e vejo que o momento abre oportunidades de aproximação de vários setores da economia com o design. As demandas atuais passam pelo pensamento projetual e sistêmico do design e o consumidor também se apropria de novas formas de discurso e expectativas em relação às marcas. É uma evolução na forma de conviver, consumir, se relacionar, cobrar, interagir e esperar das marcas. Portanto, acredito muito no crescimento do design como ferramenta de gestão, de diálogo e geração de valor. Estamos evoluindo e avançando nesse sentido.
O espaço que o design assume ganha maiores proporções e o mercado passa a entender que é possível lançar mão do design aplicado às suas diversas realidades. O design não deve ser artigo de luxo, mas permear todos os estratos e promover impacto positivo adequado a cada um deles.
Percebo, na prática, a intenção, o interesse, o desejo e o movimento das micro e pequenas empresas, por exemplo, em direção a soluções efetivas por meio do design, independente de sua vertente ou modo de atuação. O design acelera o crescimento, quando consegue fazer parte do alinhamento entre marca, negócio e comunicação com um propósito que tenha impacto positivo no mundo, dados os novos parâmetros de convivência, de consumo, de sociabilidade e das demandas que surgem a partir disso.
É interessante, e eu diria urgente, entender o design como um modo de pensamento, como um modelo de pensar negócios e relações. A interdisciplinaridade e a confluência de interesses entre empreendedores, setores da economia e do exercício social podem e devem avançar muito e com mais agilidade se utilizarem do pensamento do design.
A força do pensamento de sustentabilidade em suas inúmeras camadas, do foco no impacto ambiental das nossas formas e necessidades de consumo, da revisão de sistemas globais e complexos de produção são outras pautas vitais das manifestações mais contemporâneas do design. Faz-se necessário assumir de imediato discussões sobre o papel das marcas na construção do futuro. E o design é sim um dos articuladores fundamentais dessas discussões e das soluções que se configuram e que poderão surgir a partir delas.
Pensando na era pós-pandemia, no crescimento acelerado de experiências individuais (não só no trabalho, mas em relações pessoais cada vez mais digitalizadas) e também no desafio das empresas para gerir trabalhadores dispersos fisicamente, é possível contar com o design como um aliado? Por quê?
As formas de se relacionar com o mundo mudaram, evoluíram e se resinificaram. Isso não se restringe às relações humanas, mas na relação homem-planeta. A gestão de recursos precisa ser cada vez mais colocada como pauta prioritária. Gestão de recursos não só naturais, mas recursos emocionais e inter-relacionais também. A escassez de liberdade, a privação e as novas necessidades que esse cenário trouxe certamente também gerou novas demandas para o design e experiências. A revisão de espaços compartilhados, o repensar dos conceitos de coletividade impactaram não só a convivência em ambientes públicos, mas nos modelos presencias de trabalho e na reconfiguração das rotinas.
Diante de tanto, é difícil dizer em que momentos ou em que situações o design pode ser aliado, porque realmente as demandas e oportunidades são inúmeras. Tudo isso coloca no centro das discussões o design de serviços, o próprio design organizacional, as novas interfaces de plataformas de trabalho e cocriação remotas e fortalecem bastante o pensamento sobre UX design e estratégias de customer centric. A aceleração da transformação digital que já estava estabelecida antes do momento em que vivemos também coloca um farol em metodologias que já vinham sendo muito exploradas como agile, o design thinking e todo o pensamento de omnicanalidade, do design associado ao marketing digital, à jornada do consumidor e soluções mobile. Mas a tecnologia que tanto ganha espaço nos fóruns de discussão atuais não pode nos trazer uma miopia.
Paralelo a isso, emergem demandas de afeto físico, de uma abordagem extremamente humana, calorosa e propositiva, fazendo marcas e empresas repensarem suas formas de relacionar e de contribuir para um ecossistema social mais interessante e coerente. Se fortalecem pautas de diversidade, acesso e equidade em todos os níveis, de revisão de modelos mentais, modelos de consumo e de tantos conceitos cristalizados. O design passa então a ser um grande aliado nessa revisão de processos, touchpoints, prática e discurso das organizações.
O que é significativo hoje? O que de fato tem valor? Tudo se coloca à prova. É preciso revisar cadeias produtivas, rever relacionamento com comunidades, ajustar tom de voz, ponderar formas de interação, questionar padrões de comportamento e verdades que agora parecem não fazer tanto sentido. Muito do que funcionou até aqui provavelmente não funcionará daqui por diante. E, pensando em empresas, independente do porte, o design se mostra, mais do que nunca, uma bela ferramenta de mapeamento dessas oportunidades de melhoria e de um alinhamento profundo entre negócio, crenças, comunicação, e de possíveis novas formas de relacionamento com produtos, informação, impacto e senso de coletividade. Penso ser esse um caminho inevitável para que o nosso presente seja capaz de modelar e projetar um futuro longevo para as próximas gerações.