“Sempre me disseram que as mulheres não se ajudam. Rever essa ‘crença’ foi a primeira lição que aprendi.”
Mulher, nordestina, de origem negra, Ana Fontes teve que lidar, desde cedo, com a discriminação. Depois de 17 anos no mundo corporativo, com a carreira estável, não estava mais disposta à hostilidade daquele ambiente. Foi uma das 35 selecionadas, em mais de mil inscritas, para participar do programa 10 Mil Mulheres, da FGV. Criou um site de avaliações, um coworking. Nenhum deles vingou. Resolveu, então, dividir o que aprendera no curso e na prática com outras mulheres. Ao final de um ano, sua audiência reunia mais de 100 mil empreendedoras. Em 2017, fundou, o que é hoje, a maior entidade de apoio a negócios femininos no Brasil, a Rede Mulher Empreendedora. Nesta entrevista, compartilhamos mais sobre essa história inspiradora.
De acordo com o Sebrae, o número de mulheres empreendedoras no Brasil cresceu para 10,3 milhões. Apesar da marca histórica (34% dos negócios são liderados por elas), as mulheres precisam se esforçar mais para provar a sua competência, a viabilidade de suas ideias ou para receber o apoio de familiares. Fazendo um balanço entre conquistas e desafios, falta muito para termos equidade entre homens e mulheres no mundo dos negócios?
Sim, ainda falta muito para alcançarmos a equidade. Mas é importante destacar as conquistas que tivemos na última década, a começar pelo reconhecimento de que o empreendedorismo feminino é diferente do empreendedorismo masculino, é outro perfil, elas enfrentam desafios diferentes. Outro sinal de avanço é o crescimento do empreendedorismo feminino em territórios tradicionalmente liderados por homens, como a tecnologia, o setor financeiro, a indústria. Obviamente elas atuam em menor proporção, os números são pequenos, mas é um progresso.
Entre os piores entraves está o acesso ao capital, já que o crédito é mais negado às mulheres. O desequilíbrio entre os cuidados com a família, com os filhos, com os idosos também é um problema muito recorrente. A economia do cuidado é majoritariamente feminina, o que faz com que a mulher não tenha o mesmo tempo disponível para se dedicar ao seu negócio, ao seu desenvolvimento. Outra grande barreira à equidade refere-se ao perfil de negócio, ligado, muitas vezes, aos saberes femininos. Não que isso seja o problema, mas para que esses negócios possam crescer, a exemplo dos empreendimentos liderados por homens, é necessário que elas recebam mais apoio e estímulos ao desenvolvimento.
Diversas pesquisas apontam que as mulheres geram menos risco e maior retorno aos investidores. Porém, um dos grandes gargalos ao empreendedorismo feminino é a dificuldade de financiamento. Como a senhora enxerga esse paradoxo?
Esse paradoxo é reflexo de uma sociedade machista, onde o território do dinheiro sempre foi ocupado por homens. São eles que falam de dinheiro, a figura do provedor sempre foi masculina. O baixo acesso das mulheres aos recursos, apesar de elas serem boas pagadoras, é fruto de uma construção social que beneficia os homens.
Outro problema está na ausência de políticas públicas de inclusão para as mulheres, como existem em outros países, com linhas de crédito diferenciadas, considerando os perfis, e peculiaridades. Nossa educação financeira ainda voltada para os homens, a linguagem do dinheiro é muito masculina. Ela deveria ser mais próxima das mulheres e refletir mais a sua realidade.
Enquanto não houver mudança nesses aspectos e não tivermos mecanismos de crédito que considerem o gênero (hoje são iguais para ambos), enquanto o score de crédito não levar em conta que as mulheres são boas pagadoras, são precavidas e melhor organizadas financeiramente, dificilmente essa situação será alterada.
De executiva a líder da maior rede de apoio ao empreendedorismo no país: são mais 1,5 milhão de mulheres conectadas. Fazendo uma retrospectiva em sua jornada, quais foram os desafios que mais a ensinaram e que podem incentivar outras mulheres?
Sempre me disseram que as mulheres não se ajudam. Rever essa “crença” foi uma das primeiras lições que aprendi. Nos últimos 15 anos de empreendedorismo o que vi foram mulheres apoiando uma as outras, sendo mentoras umas das outras, se ajudando.
Outro ensinamento que me marcou foi a importância da mentoria, que na minha época nem tinha esse nome. Ter alguém que já passou pelo processo, que já empreendeu, que enfrentou dificuldades, que tem experiência para compartilhar faz muita diferença na jornada de qualquer empreendedor. Hoje conto com mentores e mentoras que me orientam, que trazem recomendações que são extremamente importantes.
Aceitar e acolher as vulnerabilidades, pedir ajuda, é fundamental. Ser vulnerável não é ser fraco, pelo contrário, é sinal de que você sabe aquilo que domina e para o que não sabe você precisa de outras pessoas.
Dar a devida atenção à saúde mental, ao autoconhecimento, entender que a vida é cheia de altos e baixos é um aspecto que foi muito relevante na minha jornada e que recomendo para o desenvolvimento de outras empreendedoras.
Você é uma das mulheres mais inspiradoras do Brasil. Em sua trajetória, quais foram suas principais referências? Quem são elas e por quê?
Contei com mulheres no meu círculo pessoal que seguraram a minha mão, que me apoiaram e elas são, até hoje, referência para mim. Além delas, me inspirei em grandes empreendedoras como a Luiza Helena Trajano, a Sônia Hess (que faz parte do conselho da Rede Mulher Empreendedora). Me inspiro também em mulheres que, não necessariamente têm um perfil empreendedor, mas que abordam questões fundamentais como o combate ao racismo, ao machismo, a exemplo da filósofa Sueli Carneiro e da psicóloga Cida Bento.
Gosto de olhar para outras referências no ambiente empreendedor, para mulheres que estão começando, construindo sua jornada, e que têm muito a ensinar. Sempre aprendo e me inspiro com cada história.
De líder para líder: como quebrar a barreira do preconceito nas empresas e construir práticas efetivas para que as mulheres conquistem mais espaço em cargos de liderança?
O primeiro passo é trazer o preconceito para a consciência, admitir que vivemos em uma sociedade machista, racista e LGBTfóbica. Se as pessoas, as empresas, não admitirem essa realidade a gente não consegue mudar o jogo. A partir da consciência, as organizações devem buscar ações efetivas, diferente daquelas “cosméticas”, que mostram, por meio da comunicação, que estão fazendo, mas não fazem nada aprofundado.
As empresas e lideranças precisam ter intencionalidade. Só assim é possível ter uma sociedade mais justa e inclusiva. Em 2023 não cabe mais a desculpa que não há mulheres ou pessoas negras qualificadas para posições de liderança.