Da sociedade anônima baseada em estruturas familiares, passando pelos primeiros marcos legais que exigiam transparência às práticas empresariais (criados na década de 1970), até as modernas medidas em prol da equidade – a jornada da governança corporativa no Brasil tem acompanhado um movimento global de busca pela responsabilidade, sustentabilidade e ética. Movimento pautado pelos anseios de uma sociedade cada vez mais complexa e disposta a cobrar um novo papel das companhias em torno da coletividade.
Não cabe mais às empresas o estabelecimento de princípios éticos com o intuito de proteger apenas os acionistas contra fraudes e arbitrariedades dos administradores, ou conflitos de interesses entre agentes de governança. A ética, aplicada às práticas corporativas, deve atender a uma rede bem mais ampla, incluindo funcionários, fornecedores, clientes, comunidades e a sociedade.
O Instituto de Governança Corporativa da América Latina (IGCLA), no relatório “Board Members Survey”, destaca que o “capitalismo tradicional”, em benefício único dos acionistas, tem cedido lugar ao “capitalismo dos grupos de interesse”. O documento, composto por entrevistas com 1.174 conselheiros de países latino-americanos, incluindo o Brasil, mostra que tem ficado mais evidente a atuação dos conselhos em temas ESG, equidade, além de visão estratégica e ética sobre aspectos tecnológicos, como inteligência artificial, redes sociais, risco cibernético, internet das coisas etc.
“Com a volátil realidade enfrentada pelas organizações no século 21, é necessário demonstrar como investidores, empresários e empreendedores podem mitigar a exposição ao risco através de melhores práticas ambientais, sociais e de governança corporativa pelas empresas”, cita o documento da IGCLA.
Marcos de evolução da governança corporativa no Brasil
Até 1970 – Controle concentrado nos proprietários, em grande parte membros de uma mesma família.
1976 – Aprovação da Lei 6.404 (Lei das S.A), grande marco legal para o estabelecimento de regras para empresas públicas e bolsa de valores.
1980 – Criação dos fundos de pensão, fundos de investimento, solidificação da Bovespa, da Bolsa do Rio, da Comissão de Valores Mobiliários e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
1992 – Criação do Relatório Cadbury. O documento de origem inglesa é considerado o primeiro código de boas práticas de Governança Corporativa e influenciou empresas de todo o mundo, incluindo o Brasil.
1995 – Criação do Instituto Brasileiro de Conselheiros de Administração (IBCA).
1999 – O IBCA passa a se chamar Instituto Brasileiro de Governança Corporativa e lança o primeiro Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa do Brasil.
2001 – Aprovação da Lei 10.303 – a nova Lei das S.A e criação dos níveis 1 e 2 de governança corporativa e do novo mercado pela BOVESPA – Bolsa de Valores de São Paulo;
2016 – Aprovação da Lei 13.303 (Lei das Estatais), que propõe mudanças com o objetivo de estimular a adoção de boas práticas de governança corporativa.
2021 – Alta histórica de IPOs na B3.
Caminhos para a boa prática da governança
Atuando desde 1995 para conferir mais transparência e eficiência às práticas empresariais, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) é a principal referência para conselhos e a alta liderança das companhias com presença no Brasil. A governança tornou-se conhecida e tomou corpo no país, inclusive, orientada por diversas publicações do instituo, como é o caso do Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa, cuja a 6ª edição foi lançada em 2023.
“Considerando que o código aponta caminhos para a boa prática da governança corporativa, acreditamos que venha contribuindo para alguns avanços importantes no âmbito das empresas que buscam pautar-se pelos seus cinco princípios: integridade, transparência, equidade, responsabilização e sustentabilidade. Notam-se progressos na diversidade nos cargos de liderança, preocupação crescente com a lisura e atitudes afirmativas referentes ao papel social das organizações e sua responsabilidade ambiental”, destaca Adriane de Almeida, diretora de Ensino e Inovação do IBGC.
Cinco princípios da governança corporativa
1-Integridade
2-Transparência
3-Equidade
4-Responsabilização
5-Sustentabilidade
* 6º Código de Melhores Práticas de Governança Corporativa/ IBGC.
De acordo com Almeida, é importante destacar algumas questões abordadas na 6ª edição do código, a começar pela inclusão do princípio da integridade, que se somou aos quatro anteriores, e a ampliação da definição de governança corporativa, deixando mais evidente sua preocupação com a longevidade das organizações. “O novo documento refere-se a governança como um sistema formado por princípios, regras, estruturas e processos, pelo qual as organizações são dirigidas e monitoradas, com vistas à geração de valor sustentável para elas, seus sócios e a sociedade”.
Almeida ressalta que depois da primeira edição do código, publicada em 1999, revisões periódicas são realizadas no documento, trazendo aprimoramentos para acompanhar as transformações do Brasil e do mundo, bem como sucessivos desafios que se apresentam à governança corporativa. “É assim que buscamos impactar não só as empresas, mas também cumprir o nosso propósito de uma governança melhor, para uma sociedade melhor.” “Incentivamos a leitura e articulação das práticas sugeridas a todos os agentes de governança, pois, como está descrito no próprio código, ‘ao adotar as recomendações, a partir de seus princípios, as organizações mostram o seu comprometimento em alinhar interesses, prevenir, mitigar e tratar conflitos e gerar valor tangível e intangível para todas as partes interessadas, considerando os impactos na economia, sociedade e meio ambiente’. Esse certamente é nosso compromisso constante”.
Conhecimento materializado em práticas responsáveis
O IBGC vem observando uma crescente materialização do conhecimento disseminado em ações práticas por parte das empresas brasileiras, como a diversidade. “Houve um aumento na proporção de empresas que têm pelo menos uma mulher na administração, nos últimos anos”, ressalta a diretora Adriane de Almeida. Em 2021, 57,3% das empresas possuía uma mulher nos conselhos, avançando para 67% em 2024. Os dados foram apurados na pesquisa inédita “Análise da diversidade de gênero e raça de administradores e empregados das empresas de capital aberto”, estudo que detectou, ainda, 27 mulheres atuando como presidentes de conselho de administração, número que vem crescendo ao longo do tempo.
Uma das iniciativas do instituto que tem contribuído para a chegada de mais mulheres aos boards é o Programa Diversidade em Conselho (PDeC). Desde a primeira edição, realizada em 2014, 207 mulheres já participaram do programa e 63% delas assumiram assentos em conselhos ou comitês.
O desafio da equidade racial
Em 2022, o IBGC lançou o Programa de Equidade Racial em Conselhos, com objetivo de ampliar a presença de pessoas negras em conselhos de administração e fazer com que as organizações brasileiras colham os benefícios da diversidade e representem melhor a sociedade. “Esse é um exemplo do nosso compromisso com ações afirmativas em prol da diversidade. Além disso, pela primeira vez, ampliamos o estudo ‘Análise da diversidade de gênero e raça de administradores e empregados das empresas de capital aberto’, incorporando a análise tanto de administradores quanto de empregados, e também o recorte de raça – nas três edições anteriores, consistia em uma análise da participação das mulheres em conselhos e diretorias das empresas de capital aberto. Essa ampliação só foi possível graças aos dados extraídos dos Formulários de Referência de Cias Abertas – já que, desde 2023 com a Resolução CVM nº 592, a divulgação de informações sobre a autodeclaração de gênero e raça tornou-se obrigatória.”
“O novo estudo agregou ainda mais informações para análise, indicando desafios como o que se refere à diversidade de raça que segue pouco observada: 81,1% dos cargos em conselhos e diretorias das organizações avaliadas são ocupados por brancos. Isso vai nos permitir acompanhar estes dados para o futuro e utilizá-los como referência para balizar iniciativas de diversidade, equidade e inclusão.”
Em paralelo, a pesquisa “Pratique ou Explique: Análise Quantitativa dos Informes das Companhias Abertas Brasileiras”, publicada em 2023, indica que a taxa média de aderência das companhias às práticas recomendadas pelo Código Brasileiro de Governança Corporativa – Companhias Abertas alcançou um novo patamar em 2023, de 65,3% – 2,7 pontos percentuais acima do ano anterior, e 14,2 pontos superior à taxa verificada em 2019. “A notícia é boa e traz a indicação de que, em geral, as companhias estão aprimorando seus modelos de governança”, avalia Adriane de Almeida.
Norma da B3 estimula diversidade nos conselhos
A B3, a exemplo da Nasdaq e da bolsa de Hong Kong, quer que todas as empresas listadas elejam ao menos uma mulher e um integrante de comunidade sub-representada (pessoas pretas, pardas ou indígenas, integrantes da comunidade LGBTQIA+ ou pessoas com deficiência) para seu conselho de administração ou diretoria estatutária até 2026. Caso a empresa não cumpra a medida, ela terá que se explicar ao mercado.
A norma, aprovada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), faz parte de uma série de ações para estimular a diversidade nos conselhos e também as boas práticas ambientais, sociais e de governança, que deverão ser reportadas pelas companhias de capital aberto.
Até 2025 as empresas listadas deverão comprovar a eleição do primeiro membro no seu conselho, seja uma mulher ou profissional de grupos minorizados. Para eleger o segundo integrante, terão até 2026. De acordo com a B3, a não adoção das medidas, desde que justificadas, não implicam sanção às companhias, que seguem com a prerrogativa de adotá-las ou não. No entanto, as empresas que não atenderem as normas deverão apresentar suas justificativas, de forma transparente, para o mercado e a sociedade. Essa proposta é parte do mecanismo “pratique ou explique”, com o objetivo de incentivar mais transparência sobre as ações adotadas em torno da diversidade, ética e responsabilidade social e ambiental.
Levantamento feito pela B3, com os dados de 343 companhias listadas, mostra que 55% das empresas não têm nenhuma mulher entre seus diretores estatutários; 36% não possuem participação feminina no conselho de administração. Em relação aos dados de raça e etnia, dessas 343 companhias, 304 declararam não ter nenhuma pessoa parda na diretoria estatuária, e 310 não têm nenhuma pessoa parda no conselho. A participação de pessoas pretas na alta liderança é ainda menor: elas não ocupam cargos de diretoria estatutária em 336 companhias e não estão nos conselhos de administração de 327 empresas.
Falta de diversidade não será aceitável nos próximos anos
Relatório do Global Network of Director Institute (GNDI), que traz um importante apanhado da governança corporativa praticada no mundo, identificou, em entrevista com 1.071 participantes de institutos de conselheiros de administração das Américas do Norte e Sul, Ásia-Pacífico, Europa, África e Oriente Médio, que a falta de diversidade nos conselhos será a prática menos aceitável nos próximos cinco anos.
Práticas que não serão aceitáveis nos próximos 5 anos:
Falta de diversidade no conselho (42%);
CEO como presidente (33%);
Nomeações políticas para o conselho (32%);
Falta de avaliações formais e rigorosas de desempenho do conselho (31%)
Falta de atenção e foco em questões sociais ou ambientais (27%)
Nomeação política para a presidência do conselho (25%)
Conflitos de interesses dos membros do conselho não resolvidos (23%)
Foco apenas no acionista em vez de na empresa ou nos stakeholders (20%)
Renomeação automática de conselheiros (18%)
CEOs atuando nos conselhos de outras organizações (10%)
Ausência de número limite de mandatos que o conselheiro independente pode ter em um conselho (10%)
Outros (2%)
IA, inovação e segurança entre prioridades dos conselhos
Ao mesmo tempo que as novas tecnologias são fortes aliadas das empresas, elas têm gerado grandes desafios nos conselhos. Segundo a pesquisa CEO Outlook 2023, 72% da alta liderança considera o investimento em IA prioritário, mas ainda há muitas questões ligadas à sua segurança e formas de integração ao negócio.
A primeira edição da pesquisa “Perspectiva dos administradores – economia, ambiente de negócios e governança”, realizada pelo IBGC, também mostra a grande atenção do alto escalão com os temas ligados às novas tecnologias. Em entrevistas realizadas com 383 executivos, o avanço da inteligência artificial (58,8%) e a inovação (64,2%) foram apontados como principais temas de interesse dos conselhos de administração em 2024.
Segundo a diretora de Ensino e Inovação do IBGC, Adriane de Almeida, essa disposição dos conselheiros é importante, pois eles têm papel significativo na estratégia de longo prazo da organização, o que inclui o fomento tecnológico das organizações. “Um dado menos recente, mas não menos importante, é do Board Index da Spencer Stuart de 2022. Ele cita que os comitês de conselho de inovação, tecnologia e transformação digital foram os que mais cresceram de 2017 a 2022 – 483% e está presente em 14% das empresas.”
“Vale reforçar algo crucial: a transformação envolve não só a simples digitalização de processos existentes, como também a cultura organizacional. Na avaliação e escolha das tecnologias emergentes, é necessário diagnosticar o que é melhor para a realidade de cada empresa, independentemente de modismos. Dada sua importância no processo, os conselheiros, sem que se exija sua especialização em tecnologia, devem procurar inteirar-se cada vez mais sobre o avanço da inovação, contribuindo para boas escolhas.”